segunda-feira, 25 de maio de 2009

Camembert

Era naquela esquina escura, uma noite nublada e silenciosa, em que ouviam-se apenas os miados dos gatos solitários pelos muros, que havia um aviso no poste: “Procura-se amor a primeira vista. Cuidado com o cão.”, um homem encostara no poste com o violão e tocava uma serenata em direção à janela em frente à banca. Nenhuma luz acesa.

***

- O senhor se considera culpado? - A voz do juiz era imponente, empostado como que uma ordem.
- Não. Me considero um artista. Poucos hão de compreender, meritíssimo, mas a arte da eternidade é algo pra quê o mundo ainda não está preparado. O senhor sabe qual a razão de uma sensação eterna? Não é matemática, jamais! É pura vontade, desejo de um auge doce, viril e sem palavras. Gasta-se o som com palavras demais, quando a respiração já se basta.
- Levem-no.
- Excelentíssimo. Eu avisei, “cuidado com o cão”. Foi um movimento voluntário. - Suas palavras soaram como uma ameaça. Não ao juiz, mas à sua razão, à sua crença no mundo. Talvez o desejo fosse real.

***

A sombra da porta ficou pra trás, desfazendo a silhueta e mostrando o rosto angelical, era uma menina, talvez vinte e um ou vinte e dois anos. Sua postura demonstrava a insegurança com que encarava aquele estranho.
- Entre...
- Obrigado. - A voz escapava, devia ser seu primeiro encontro às escuras. Mas não perdera a oportunidade de balançar a cintura enquanto passava pelo seu admirador.
Ele não sorria, sua expressão era inabalável, não tirava o olhar da janela, a vista para a lagoa lhe hipnotizava por alguns momentos. Entre taças de vinho e camembert a conversa mantinha um tom agradável, os dois iam se sentindo mais íntimos sem se deixar prender por falsos moralismos ou hipocrisias cotidianas.
- Você acredita?- Em quê?
- Em você?
- Não... nem em ninguém.
- Nos olhos. São a única fonte de alguma coisa, brilham ou não, dizem o que querem, são sutis como esse camembert. Levemente aveludados por fora, cremosos por dentro, com um sabor forte que não se esconde, é sua quase amargura de experiência, sua forma de impor ao mundo o interior que nem todos gostariam de receber. Mas é caríssimo...

Das preliminares foram ao que lhes interessava, o desejo já suprimia qualquer palavra. Os corpos se debatiam em compasso desgovernado, os olhos não mais se mantinham abertos, os maxilares perdiam a força. As pernas dela lhe espremiam a cintura, as mãos lhe apertavam e arranhavam as costas sem qualquer repreensão, sentia a pulsação em todas as partes do corpo, enquanto ela arfava fortemente, numa respiração alta entremeada de gemidos alternados. Sentia o auge do tesão, podia ver no rosto dela que estava prestes ao orgasmo. Enquanto os olhos reviravam, sutilmente passou a mão por debaixo da cama pegando algo que não dava para ver no escuro. Em um segundo ouvia-se um gemido mais alto, ela gozara. Antes que o som pudesse ser emitido por completo, a lâmina cortara-lhe a garganta. O grito mudo. A expressão permanecia.
Ele saiu de cima do corpo, sentou na poltrona virada para a janela e, ainda nu, acendeu um cachimbo. Olhava o semblante dela petrificado, a boca entreaberta quase esboçando um sorriso, seus olhos brilhando intensamente, seu corpo extremamente relaxado, quase uma pintura. Conseguira eternizar o gozo, muito mais belo que a arte dos egípcios, não mumificava, eternizava o desejo irreprimível. O sangue já se espalhara por todo quarto. Só quando tocou seus pés é que se ouviu se urro de prazer. Agora sim chegara ao orgasmo.
Vestiu-se, pegou seu violão e desceu o elevador do prédio. Passando pelo porteiro, antes de sair, lhe perguntou:
- Severino, sabe qual a diferença da paixão pra razão?
- …
- A paixão é infantil, a razão é um velho safado. O meu grande pecado é sofrer desses dois males...
Andou em direção ao poste perto da banca, encostou-se e começou uma serenata em direção à sua janela. Apagada. Só seus olhos brilhavam.

Daniel de Lima Fraiha

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