segunda-feira, 25 de maio de 2009

It´s show time!

As lembranças do salão cheio enchiam seus rostos de lágrimas, a nostalgia dos anos dourados revelavam uma decadência que os palhaços jamais imaginavam. Seus truques já não agradavam nem a pequenos bebês, a inocência sumira. O circo sumira. A nova onda do verão era a chamada "lona digital".
- Pimpão, lembra quando a gente subia ali na corda e ia andando e cantando, a plateia toda ensandecida e o anãozinho jogando banana...
- É, meu velho... careca de peruca não resiste a pé de vento - soltou um de seus ditados que ninguém compreendia muito bem. - Acabou, Tuiuiu. Já estou terminando meu curso de datilógrafo, tenho um futuro pela frente agora. Copiarei tudo que me mandam. Inventar já não serve.
Um misto de raiva e tristeza se deixavam ver nos olhos de Tuiuiu, ainda vestido de Carmem Miranda tirou uma das frutas da cabeça e começou a observá-la.

***

Lavou o rosto, fitou o espelho e, após deixar o tomate, a máscara e a gaita na pia, gritou para que todos ouvissem: "Pimpão morreu!!!".A barulheira que se seguiu ensurdecia qualquer ruído, o circo parava o espetáculo no meio. A plateia começava a preparar seus tomates para arremessar, o anão tirava sua roupa de bailarina e já não mais tinha o sorriso no rosto, o elefante sentara em cima do cuspidor de fogo e a mulher barbada enfiara o rosto em suas próprias axilas na busca de consolo. Em meio ao alvoroço se seguiu um momento de silêncio completo, uma corda se desenrolava desde o cume da lona com algo preso em sua ponta. Quando esticou-se por inteiro o pano preto que envolvia a coisa se soltou e dele emergiu um corpo branco e sem vida, com cada uma das mãos presa a uma ponta da corda que se dividia em dois. Notava-se uma protuberância na garganta do morto e algo escrito em seu peito.
De dentro do camarim ouvia-se o início de um som de gaita sendo espalhando pelo ambiente, era a melodia de "Stand by me", o público se levantava e começava a cantar junto, uns sabiam a letra, outros apenas assoviavam. A atmosfera tomava um ar espiritual, pairava uma sintonia orquestrada, como num concerto longamente ensaiado.Um baque surdo cortou o som, a corda havia rompido, o corpo estava no chão. Os cortes em seu peito formavam a frase "O show tem que continuar!", a boca aberta permitia que se visse a superfície de algo que estufava o pescoço de Pimpão, era um tomate. A plateia sentou, largaram seus tomates no chão e a música recomeçou.

***

- Quer uma água?
- Quero sim. Sem gelo.
Tuiuiu observava o palhaço tomando sua água com o rosto inocente, aquele aspecto infantil e leve dos bobos pintados. Quando o copo ficou vazio, ele disse:
- Desculpa, Pimpão. Mas antes me diga qual a sua maior vontade na vida? O que te faz continuar com esse sorriso e essa alegria de sempre no rosto?
- É o sorriso interno, meu caro. Essa paixão pelo que ainda não aconteceu, pelo que pode acontecer, por essa grande roda de possibilidades. As escolhas são meus instintos de graça. Sem elas eu perco a liberdade e tudo deixa de ser uma palhaçada. Vira concurso público...
Pimpão caía para o lado da cadeira, seus olhos revirados, a língua preta, marcada pelo veneno do arsênico.
Tuiuiu embrulhou o corpo, pôs a máscara no rosto e entrou na caminhonete rumando para o circo. No rádio BB king cantava, O palhaço acompanhava. As lágrimas escorriam pelo rosto e iam parar no banco, dois tomates.

***

A gaita cessou, a cantoria foi perdendo voz e ouviu-se outro grito: "Tuiuiu morreu!!!".
O corpo estava caído pelo camarim, a língua preta e um tomate na boca. Em sua mão um bilhete com apenas uma pequena frase: "It´s show time!".

Daniel de Lima Fraiha

Camembert

Era naquela esquina escura, uma noite nublada e silenciosa, em que ouviam-se apenas os miados dos gatos solitários pelos muros, que havia um aviso no poste: “Procura-se amor a primeira vista. Cuidado com o cão.”, um homem encostara no poste com o violão e tocava uma serenata em direção à janela em frente à banca. Nenhuma luz acesa.

***

- O senhor se considera culpado? - A voz do juiz era imponente, empostado como que uma ordem.
- Não. Me considero um artista. Poucos hão de compreender, meritíssimo, mas a arte da eternidade é algo pra quê o mundo ainda não está preparado. O senhor sabe qual a razão de uma sensação eterna? Não é matemática, jamais! É pura vontade, desejo de um auge doce, viril e sem palavras. Gasta-se o som com palavras demais, quando a respiração já se basta.
- Levem-no.
- Excelentíssimo. Eu avisei, “cuidado com o cão”. Foi um movimento voluntário. - Suas palavras soaram como uma ameaça. Não ao juiz, mas à sua razão, à sua crença no mundo. Talvez o desejo fosse real.

***

A sombra da porta ficou pra trás, desfazendo a silhueta e mostrando o rosto angelical, era uma menina, talvez vinte e um ou vinte e dois anos. Sua postura demonstrava a insegurança com que encarava aquele estranho.
- Entre...
- Obrigado. - A voz escapava, devia ser seu primeiro encontro às escuras. Mas não perdera a oportunidade de balançar a cintura enquanto passava pelo seu admirador.
Ele não sorria, sua expressão era inabalável, não tirava o olhar da janela, a vista para a lagoa lhe hipnotizava por alguns momentos. Entre taças de vinho e camembert a conversa mantinha um tom agradável, os dois iam se sentindo mais íntimos sem se deixar prender por falsos moralismos ou hipocrisias cotidianas.
- Você acredita?- Em quê?
- Em você?
- Não... nem em ninguém.
- Nos olhos. São a única fonte de alguma coisa, brilham ou não, dizem o que querem, são sutis como esse camembert. Levemente aveludados por fora, cremosos por dentro, com um sabor forte que não se esconde, é sua quase amargura de experiência, sua forma de impor ao mundo o interior que nem todos gostariam de receber. Mas é caríssimo...

Das preliminares foram ao que lhes interessava, o desejo já suprimia qualquer palavra. Os corpos se debatiam em compasso desgovernado, os olhos não mais se mantinham abertos, os maxilares perdiam a força. As pernas dela lhe espremiam a cintura, as mãos lhe apertavam e arranhavam as costas sem qualquer repreensão, sentia a pulsação em todas as partes do corpo, enquanto ela arfava fortemente, numa respiração alta entremeada de gemidos alternados. Sentia o auge do tesão, podia ver no rosto dela que estava prestes ao orgasmo. Enquanto os olhos reviravam, sutilmente passou a mão por debaixo da cama pegando algo que não dava para ver no escuro. Em um segundo ouvia-se um gemido mais alto, ela gozara. Antes que o som pudesse ser emitido por completo, a lâmina cortara-lhe a garganta. O grito mudo. A expressão permanecia.
Ele saiu de cima do corpo, sentou na poltrona virada para a janela e, ainda nu, acendeu um cachimbo. Olhava o semblante dela petrificado, a boca entreaberta quase esboçando um sorriso, seus olhos brilhando intensamente, seu corpo extremamente relaxado, quase uma pintura. Conseguira eternizar o gozo, muito mais belo que a arte dos egípcios, não mumificava, eternizava o desejo irreprimível. O sangue já se espalhara por todo quarto. Só quando tocou seus pés é que se ouviu se urro de prazer. Agora sim chegara ao orgasmo.
Vestiu-se, pegou seu violão e desceu o elevador do prédio. Passando pelo porteiro, antes de sair, lhe perguntou:
- Severino, sabe qual a diferença da paixão pra razão?
- …
- A paixão é infantil, a razão é um velho safado. O meu grande pecado é sofrer desses dois males...
Andou em direção ao poste perto da banca, encostou-se e começou uma serenata em direção à sua janela. Apagada. Só seus olhos brilhavam.

Daniel de Lima Fraiha

Mostarda Alemã

Meio que de repente, de dentro de um arbusto, saltou um avestruz do tamanho de um coqueiro anão, gritando a língua das avestruzes, que só elas próprias e as crianças entendem, e fazendo um rebuliço, que não fosse pelos gambitinhos rosas, poderia ser uma paródia do lago dos cisnes.
- Olha mamãe, parece com você! - Disse inocentemente o pequeno que se agitava de animação com a descoberta de um novo mundo.A mãe, tadinha, parecia mesmo... e como era de se esperar, esmurrou seu filho sem pestanejar, mas não imaginava o que lhe cabia logo após. A cena que se seguiu jamais poderia ser esquecida. Com um giro magistral e desenhado, a avestruz (já havia-se descoberto que era fêmea) tascou uma bicada lacônica na jugular da madame mamãe, sem lhe dar chance de vida para contar história. O menino passou a ser criado pela avestruz, que sempre se ocupou da melhor forma em criá-lo bem. Cresceu tendo bons estudos, sempre muito ligado à família, era o único na face da terra capaz de se comunicar com as avestruzes (sem contar as crianças, claro. Mas estas depois esqueciam e achavam que tudo não passara de ilusão e inocência infantil). Os almoços de fim de semana eram regados a frango à passarinho, especialidade da classe que tinha orgulho de dizer que não provinha dos galináceos, apesar de algumas controvérsias.
Com o tempo, o garoto foi se tornando bem sucedido em seus negócios e ganhando respeito no mercado de ovos. Sua família produzia e ele os comerciava. Um ovo de avestruz não saia por menos de dez moedas de prata. E o de sua linhagem girava em torno de vinte, tamanha era a qualidade de sua clara. O garoto que virara comerciante se deparava com um mundo de possibilidades, até certo dia... quando conheceu uma garota, humana. Seria a primeira de sua vida. Sua família não foi tão condescendente quanto ele esperava. Não aceitavam de jeito nenhum aquela gente que fedia a colônia de terceira, aquela espécie que cismavam em criar cabelos distintos, cada vez mais se assemelhando a catatuas e calopsitas, inimigas mortais das avestruzes. Não, tudo menos isso, uma humana jamais. O que havia de errado na capivara que haviam lhe apresentado verão passado, todos acharam que os dias que passaram juntos à beira do rio tinham lhe marcado...
O Homem entrou em surto, gastou todas suas finanças em um navio e levou sua família toda para uma viagem pelos sete mares. Seria ele o capitão e a mulher, que se chamava Marilu, seria sua concubina. Quando souberam o nome da humana o rebuliço foi maior ainda, não aguentariam muito tempo vendo Marilu botando ovos pela cloaca. Ah, quase esquecia, ela era humana, mas possuía essa peculiaridade, sua qualidade de mamífero havia sido transmutada e, após um consumo exagerado de transgênicos, começara a pôr ovos.Depois de um mês e meio no navio, todos mareados e já meio desbotados pelo sol, a desordem reinava, todos se odiavam e, a cada parada, havia novas reclamações da comida que ele trazia para dentro do flutuante. Depois de todo esse imbróglio familiar e amoroso, Marilu dava sinais de que sua cloaca estava fraquejando, ameaçava a começar a colocar ovos pelo …
- Não! Isso nunca! - gritou o capitão – Ela é uma mulher de respeito, vem de uma família fina!- Foi então que ordenou em alto brado – Soltem as avestruzes pelo convés! Espalhem a mostarda pelos canhões já! - Era uma receita antiga que sua família lhe ensinara para fortificar os ovos, mostarda espalhada em objetos bélicos.Não só Marilu ficou encarregada de limpar os canhões até se sentir saciada, a família inteira aproveitara para encher um pouco o pandulho e se deliciar com o famoso “canon à la moutarde” que não era feito desde que vovó Bolena perdera a cabeça. Ao final da orgia gastronômica todos haviam caído para os lados, semi-mortos, restando apenas o capitão em pé e saudável. Seu espanto e pavor eram imedidos, seu semblante agora lembrava algo entre um pinguim e um rinoceronte no cio. Conseguia distinguir um único movimento no meio do pré-cemitério, era sua mãe que apontava para o livro de receitas e sibilava em tom derradeiro, apontando para a sessão “venenos”, ”Era mostarda alemã...”.

Daniel de Lima Fraiha