sábado, 19 de julho de 2008

Não se incomodem, só estou passando


Era terça-feira, não me lembro se dessa semana ou da passada, mas era terça. Depois de ir ao mercado o vizinho me perguntou se eu já tinha visto o jornal. Claro que não tinha, eram só onze da manhã, o dia mal tinha raiado. Ele me mandou ver o quanto antes. Eu vi.
Era terça-feira, dizia no jornal. E o corpo de um homem chamado João Viriato Epaminondas tinha sido achado numa encosta. “Nossa! Nunca imaginei ter um xará completo.”. Quando olhei pra foto, vi que não tinha mesmo. Era eu, sorrindo ao lado de um pequeno obituário, onde dizia apenas “Jovem engenheiro, perdeu os pais aos sete anos, ficando órfão. Aos vinte se formou com as melhores notas do curso, para em poucos anos ser consagrado como um dos mais notórios engenheiros do país. Foi encontrado morto ontem, segunda-feira, na encosta de um morro.”.
Como assim “na encosta de um morro”?! Eu moro em Brasília! E mais, “ficando órfão”? Foi esclarecedora a frase, afinal tem muita gente que perde os pais e fica só triste.
Fui até a casa do vizinho, toquei a campainha umas quinze vezes, mas ele não atendeu. Saí do prédio e quando olhei pra sacada, tinha uma placa no vizinho dizendo “aluga-se”.
Que cara rápido! Entrei de novo, não tinha porteiro. Ninguém passando na rua. Eu precisava perguntar pra alguém sobre o jornal, avisar que eu estava em casa, vivo!
Peguei a bicicleta, corri até a casa de um grande amigo, ninguém na rua, ninguém em casa.
Fui até meu trabalho, ninguém. O comércio fechado. Tudo fechado e vazio.
Corri pra casa, liguei pra toda minha lista telefônica. Ninguém atendeu. Até que vi no jornal o número dos classificados, liguei sem pensar. Atendeu uma voz feminina que quase me fez gritar de ansiedade, mas dois segundos depois percebi que era uma gravação. Ainda assim demorei a conseguir desligar de tanto medo.
Quebrei umas coisas num acesso de loucura e saí de novo. Agora já mais calmo.
Comecei a olhar as coisas de outro jeito, tudo estava calmo, tranqüilo, como nunca. Fui tomado por um espírito de velho e fiquei felicíssimo com aquele silêncio, aquela paz.
Saí andando e cantando pela rua, numa alegria que há muito tempo não sentia. Comecei a prestar atenção nas árvores, nos pássaros, nas cores do dia. Era tudo tão bonito que nem percebi um barulho que se aproximava. Quando cheguei à praia, olhei o mar e dei um sorriso enorme, me preparava pra dar um mergulho, mas fui cortado pelo som agora altíssimo que vinha da minha direita. Quando me virei, notei que a cidade inteira estava lá, todos assistindo a alguém que falava alto e firme algumas coisas. De repente alguém gritou apontando em minha direção. “Ele voltou! Olhem ele ali!”.
Fiquei branco, desesperado. A multidão me levantou nos ombros e me deixou em cima do palanque, me olhando como a uma salvação, O Escolhido, ou qualquer coisa do tipo. Todos ansiosos por algum pronunciamento, alguma explicação, qualquer palavra. Passaram-me o microfone. “er... sobre...o jornal, é... eu queria dizer que... na verdade... me formei com vinte e um anos.”. E fui dar meu mergulho.

Daniel de Lima Fraiha – 10/07/2008